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sábado, 12 de novembro de 2011

Ruth Cardoso: Inovações teóricas e na militância

Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Sabático],
Sábado, 12 de novembro de 2011, p. S5.

José de Souza Martins




A Obra Reunida, de Ruth Cardoso, (Editora Mameluco, São Paulo, 2011), em boa hora organizada, a partir de laboriosa garimpagem, por Teresa Pires do Rio Caldeira, coloca ao alcance dos estudiosos e do grande público textos preciosos e dispersos da conhecida antropóloga. Uma densa apresentação da organizadora do volume situa compreensivamente a rica diversidade da obra da autora dos textos, cinco dos quais escritos em colaboração com colegas de pesquisa e de profissão, várias delas suas antigas alunas. Um depoimento de Eunice Ribeiro Durham, que foi amiga e colega de Ruth desde que ambas se tornaram assistentes da Cadeira de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, constitui um esclarecedor e apropriado preâmbulo afetivo e intelectual. Uma contribuição à história das ciências sociais entre nós, da qual ambas se tornaram destacadas protagonistas, como cientistas e professoras, formadoras de toda uma geração de cientistas sociais.
O bem apresentado e anotado volume cumpre a função decisiva de propiciar e facilitar o retorno à obra de uma autora que, por discreta e competente, preocupou-se pouco com sua visibilidade pública, apesar da reconhecida importância teórica de seus escritos. Importância que se desdobra na inovadora concepção de militância política no marco da atuação acadêmica, a de colocar sua vocação de docente e de cientista também a serviço dos desvalidos, no reconhecimento da legitimidade de suas demandas, representações e visão de mundo, como protagonistas de mudanças, mas também como referência de conhecimento. Pela época de sua morte, através do Comunidade Solidária, Ruth desenvolvia um trabalho na periferia de São Paulo, na Cidade Tiradentes. Dava continuidade a pesquisas em favelas e bairros pobres, tema pelo qual se interessara em função da importância que passaram a ter, desde os meados dos anos 1970, os movimentos populares, as chamadas populações marginais e o protagonismo político dos excluídos. O novo caminho da ação política.


A boa ordem na organização dos textos deste livro dá ao leitor o que é também uma biografia intelectual da autora, demarcada pelos momentos significativos de seu crescimento como cientista, do funcionalismo ao estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, passando antes pela dialética de Marx. Momentos e temas que expressam uma história pessoal de vivência plena e inconformada das graves vicissitudes desta nossa trágica América Latina. Longe de vivê-los como tormentos pessoais, ainda que na experiência do exílio, Ruth só cresceu na adversidade política, como intelectual inquieta em face dos desafios de compreensão e de interpretação do que via também como desafios sociais e políticos. Poucos na história do pensamento social e político brasileiro tiveram a oportunidade de atar e interpretar tão bem os fios desatados da história sem rumo.
Neste volume, Ruth expõe o quanto teve e ainda tem a dizer sobre desafios interpretativos das ciências sociais, não só da Antropologia, aceitando-os antes que fossem percebidos por muitos outros. Seus estudos sobre o mundo juvenil das famílias japonesas imigradas para o Brasil, dos nisseis em face dos isseis, dos jovens em face dos velhos, indicavam uma escolha teórica e metodologicamente acertada, na referência empírica apropriadamente problematizada.
Sua reflexão teórica sobre a questão do método na antropologia é precisa e está presente nos explícitos cuidados que tinha quanto a isso, qualquer que fosse o tema a ser tratado. Ela era cientista rigorosa mesmo em relação a temas que, parecendo “leves” ou “da moda”, supostamente dispensavam o rigor crítico do verdadeiro pesquisador. É o que se vê em suas análises relativas aos movimentos sociais e particularmente sobre um tema que se mantém controvertido até hoje, o dos movimentos populares e o das comunidades eclesiais de base. Ruth, na perspectiva crítica, joga com o reconhecimento de sua legitimidade, do novo que anunciam, das mudanças sociais e políticas positivas que por meio deles se propõem. Na sequência, remete-os ao plano propriamente teórico para apontar o que neles desafia a tentação do absoluto, da interpretação fechada, do conhecimento reificado. Retomado de maneira politicamente criativa, o conceito de comunidade revela mas acoberta, joga para baixo do tapete, como ela diz, as perturbações do comunitário, as tensões que, disfarçadas no homogêneo, o desdizem e nem por isso o invalidam.
Um tema forte de vários de seus estudos, tratado com grande propriedade teórica, é o da militância, que invadiu as ciências sociais sem maior cuidado. Ruth foi das primeiras a apontar o afã de arriscada cumplicidade entre o pesquisador e as populações estudadas, certo álibi científico para legitimar as lutas sociais, a interpretação como camisa de força, mas também um certo álibi social e político para legitimar a pesquisa científica, sem os necessários cuidados com os requisitos próprios dos cânones da ciência. O ensaio sobre a armadilha do método, um clássico da antropologia brasileira, como que centraliza e “amarra” o volume. Não só porque analisa de maneira erudita os impasses históricos da nossa antropologia e das nossas ciências sociais, mas também porque situa precisamente esses impasses como impasses da produção do conhecimento no diálogo criativo com a realidade, expostos os disfarces para um “ser de dentro” que continuam a confinar o cientista nas ciladas do “ser de fora”.
 *José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011) e Uma Arqueologia da Memória Social - Autobiografia de um moleque de fábrica, (Ateliê Editorial), 2011.

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