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domingo, 13 de novembro de 2011

Quem tem medo de Mary Burns? A questão da relação entre teoria e pesquisa na Sociologia


 Mary Burns foi uma irlandesa, analfabeta, operária da fábrica têxtil Ermen & Engels, em Manchester, Inglaterra, de que a família de Friedrich Engels era sócia. Como é sabido, Engels foi o parceiro intelectual de Karl Marx, ambos considerados pais fundadores do socialismo científico. Engels tornou-se amante de sua operária, algo que os socialistas sempre criticaram e do que sempre se envergonharam. Era esse um modo dos patrões não só explorarem economicamente seus trabalhadores, mas de os explorarem moralmente através do desfrute sexual de suas filhas. Acabaram vivendo juntos. No entanto, foi ela quem o conduziu pelos cortiços e favelas de Manchester onde viviam miseravelmente os trabalhadores irlandeses e onde ele nunca conseguiria entrar, dada a hostilidade dos trabalhadores aos patrões e aos não irlandeses. Foi ela quem, ao longo da vida, municiou Engels com os detalhes da mentalidade e do modo de vida dos operários locais, a miséria material e moral de sua vida cotidiana. Foi ela quem revelou a Engels o que era a carne da ossatura filosófica das teses e ideias dos jovens hegelianos. Nem Engels nem Marx jamais mencionaram em seus escritos que foi Mary Burns  quem os alertou para a carência de dimensão empírico-indutiva no que hoje se chama, mais apropriadamente, de sociologia marxiana. No entanto, a involuntária participação de Mary Burns  na vida intelectual de Engels foi decisiva para a elaboração do primeiro estudo de sociologia urbana, seu livro sobre A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Engels, aliás, contrabandeava as informações de Mary Burns para Karl Marx, em Londres, cujo desconhecimento da realidade empírica da classe operária, que ele pretendia explicar, atrasara em muitos anos o desenvolvimento de sua explicação científica sobre a formação e a dinâmica das classes sociais. Ele intuía filosoficamente, mas não conhecia sociologicamente. Aliás, essa é uma das razões pelas quais a classe operária do sedentário Karl Marx, não obstante Mary Burns , é uma classe operária filosófica, puramente teórica, como mostrou Agnes Heller, que foi assistente de Georgy Lukács. Diferente do que ocorreu com a obra de Engels,aqui mencionada.
Formulei o tema desse modo porque a sociologia brasileira vem passando por um complicado processo de perda de referência empírica. Os jovens sociólogos tendem a fazer uma sociologia que desdenha a pesquisa empírica cuidadosa e tecnicamente consistente, quase sempre têm aversão ao trabalho de campo, resistem ao amassar o barro nas veredas do sertão e nas ruas imundas dos bairros pobres. Acabam no beco sem saída de uma sociologia dedutiva e filosofante de que resultam estudos em que não se sabe qual é a diferença entre Arapiraca e Paris. Uma das fortes características da tradição sociológica é, justamente, a de trabalhar as singularidades de cada sociedade no marco de sua universalidade, nas enormes diferenças sociais, históricas e culturais que há entre sociedades. Daí resulta uma sociologia que, não raro, é mera cópia simplificada do já dito alhures a pretexto de ser densa interpretação teórica. O real que se encaixe no pretensamente teórico. Esquecem-se que as grandes descobertas teóricas das Ciências Sociais foram feitas no trabalho de campo, como é o caso do "insight" de Lévy-Strauss numa conversa com um índio durante a pesquisa de campo no norte do Mato Grosso, que o levou à formulação do estruturalismo. Ou o "insight" de Henri Lefebvre sobre a tripla dimensão dialética do espaço quando fazia sua pesquisa sociológica sobre as cidades como motorista de táxi, sua técnica de pesquisa para penetrar nas incógnitas do vivido.
José de Souza Martins 

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